Vivemos em uma era marcada pela produtividade incessante, pela busca de desempenho e pela crença de que sempre podemos — e devemos — fazer mais. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em sua obra “Sociedade do Cansaço”, oferece uma análise profunda e perturbadora sobre esse fenômeno. Para ele, a sociedade contemporânea não é mais dominada pela repressão e pela disciplina — como nas análises de Michel Foucault —, mas por um excesso de positividade, que nos conduz a um esgotamento coletivo: o cansaço do poder, da hiperatividade e da autoexploração.
Da sociedade disciplinar à sociedade do desempenho
No passado, vivíamos sob o modelo da sociedade disciplinar, descrita por Foucault, onde o poder se manifestava por meio da proibição e do controle: “você deve”, “você não pode”. Hospitais, escolas, fábricas e prisões eram os símbolos desse sistema.
Hoje, segundo Han, entramos em uma nova fase — a sociedade do desempenho —, em que a coerção vem travestida de liberdade. Já não somos obrigados a trabalhar: nós mesmos nos obrigamos. O verbo que domina nosso tempo não é mais “dever”, mas “poder”. Vivemos sob o lema positivo do “Yes, we can”, acreditando que a felicidade e o sucesso dependem apenas de esforço pessoal.
No entanto, esse poder ilimitado é uma armadilha. A liberdade de poder tudo transforma-se em uma coerção disfarçada, e o indivíduo passa a se explorar em nome da performance. O sujeito de hoje é, ao mesmo tempo, senhor e escravo de si mesmo.
O cansaço e as doenças da positividade
Para Han, cada época tem suas doenças características. O século XX foi marcado pelas enfermidades bacteriológicas e virais; o século XXI, por sua vez, é dominado pelas doenças neuronais: depressão, burnout, ansiedade e TDAH.
Essas patologias não surgem da negatividade (como o medo, a repressão ou o conflito), mas do excesso de positividade — da hiperatividade, do excesso de estímulos, da superprodução e da constante pressão para sermos produtivos e felizes.
A violência da positividade, como ele chama, não vem de fora. É imanente — nasce dentro de nós, da vontade incessante de fazer mais e ser mais. Essa nova forma de violência não exclui nem oprime, mas exaure.
O animal laborans e a perda da contemplação
Inspirando-se em Hannah Arendt, Han revisita o conceito de animal laborans — o ser humano reduzido ao trabalho, à produtividade. Se antes o trabalho tinha um sentido social, hoje ele se tornou um fim em si mesmo.
A vida contemporânea é hiperativa, ansiosa e nervosa, incapaz de simplesmente existir sem produzir. Nessa lógica, até o lazer é colonizado pela performance: fazemos yoga para “melhorar o foco”, lemos para “aumentar a produtividade”, viajamos para “gerar conteúdo”.
Han argumenta que o mundo perdeu o espaço da vita contemplativa, a vida do olhar profundo e da pausa.
A sociedade atual — repleta de telas, informações e notificações — destruiu a capacidade de atenção e de tédio criativo. O homem moderno não consegue mais parar.
A pedagogia do ver e o valor do tédio
Em um dos trechos mais poéticos da obra, Han defende a necessidade de reaprender a ver, a esperar e a não reagir. Citando Nietzsche, ele propõe uma “pedagogia do ver”: cultivar o olhar lento e contemplativo, capaz de resistir à enxurrada de estímulos.
O tédio profundo — aquele que Walter Benjamin chamava de “pássaro onírico que choca o ovo da experiência” — é, para Han, essencial à criação e ao pensamento.
Mas em uma cultura movida pelo imediatismo, pela hiperatenção e pelo multitasking, o tédio se tornou intolerável. Vivemos anestesiados, presos em um ciclo de fazer sem pensar.
A exaustão como identidade
A consequência desse excesso é o surgimento do sujeito esgotado: alguém que não sofre mais por falta de liberdade, mas por liberdade demais.
A síndrome de burnout e a depressão são expressões de uma nova forma de fracasso — o fracasso de não corresponder ao ideal de desempenho.
O indivíduo contemporâneo está sempre em guerra consigo mesmo. Ele se cobra, se culpa e se pune quando não atinge suas próprias metas. Assim, o inimigo não está mais fora — está dentro de nós.
O cansaço que ainda salva
No capítulo final, Han distingue dois tipos de cansaço: o cansaço destrutivo, individualizante e solitário — típico da sociedade do desempenho —, e o cansaço vital, compartilhado e reconciliador, que ele chama de “cansaço bom”.
Esse último é o cansaço da pausa, da contemplação e do silêncio. É o cansaço que não separa, mas une, que permite a comunhão e a reconexão com o outro e consigo mesmo.
O filósofo conclui que talvez apenas esse cansaço reconciliador possa nos salvar: o cansaço que permite o repouso da alma, o reencontro com o tempo lento e com o simples ato de existir.
Conclusão
Sociedade do Cansaço é mais do que um diagnóstico — é um espelho. Han nos convida a repensar a lógica da performance e a recuperar a capacidade de não fazer, de parar, de contemplar.
Em um mundo que valoriza apenas o sucesso e o movimento, talvez o maior ato de resistência seja aceitar o descanso.
Reaprender o ócio, o tédio e o silêncio é, afinal, uma forma de reconquistar a liberdade.




